Após quase 150 dias de paralisação, a greve dos roteiristas de Hollywood chegou ao fim nesta quarta-feira, 27 de setembro. Se você esteve acompanhando as notícias, deve saber que Hollywood parou. No dia 02 de maio deste ano, o sindicato que representa a categoria de roteiristas dos Estados Unidos (WGA, na sigla em inglês) decretou greve após uma série de negociações mal-sucedidas com os principais conglomerados do entretenimento, com o nítido objetivo de melhores condições de trabalho e remuneração. Em julho, o Sindicato de Atores (SAG-AFTRA) se uniu à classe escritora, também anunciando uma greve geral.
Daqui, presenciamos um momento inédito: foi a primeira vez em mais de 60 anos que atores e roteiristas entram em greve ao mesmo tempo, o que implicou na paralisação nos trabalhos de mais de 170 mil associados, somando as duas instituições. Esse cenário é fruto de todas as transformações a que a indústria audiovisual vem atravessando nos últimos anos, sendo que o saldo desse movimento grevista é um belo indicativo de como a máquina do entretenimento passará a funcionar daqui para frente, e sem sombra de dúvidas, demonstra a força inquestionável dos profissionais que integram a cadeia do fazer audiovisual.
Mas, afinal, quais eram as reivindicações?
As principais demandas do movimento grevista refletem o cenário atual, os desafios apresentados pela inovação e modelo de negócio dos conglomerados. Com a ascensão das plataformas de streaming, a versatilidade dos modelos de comercialização, tais como FVOD, TVOD e SVOD, e a presença cada vez mais frequente da Inteligência Artificial nas produções, a indústria do audiovisual passa por fortes mudanças no “modo de fazer”, seja no negocial, seja quanto ao impacto tecnológico – do conceber ao comercializar filmes e séries. Uma das principais questões que ocupou o palco central do debate, fortemente reivindicada pelos sindicatos, é a atualização de seus contratos para fazer jus aos pagamentos residuais (residuals, em inglês) diante da permanência das obras nos catálogos das plataformas de streaming e a regulamentação da IA dentro das produções.
Mas o que são os ‘residuals’? Explicamos: é a receita gerada e paga aos participantes de uma produção (e aqui, falamos especificamente dos atores e roteiristas) toda vez que uma obra é distribuída ou reprisada; é uma forma dos intérpretes (classe artística) e roteiristas, receberem uma cota-parte da monetização gerada pela exploração econômica de seus trabalhos, após a finalização das gravações, ou seja, a conclusão dos serviços prestados.
O problema é que, com o fortalecimento das produções para o streaming, esse repasse parou de ser feito, já que sob o argumento das associações WGA e SAG-AFTRA, a transparência quanto ao número de exibições de cada projeto, faz com que o pagamento a tais agentes da cadeia audiovisual seja feito apenas única vez – no ato da contratação da prestação de serviços - sem levar em consideração fatores importantíssimos como a audiência e a popularidade da obra.
Assim, enquanto artistas como Jennifer Aniston retiravam boa parte de suas receitas das incansáveis reexibições televisivas da série “Friends” em canais como NBC, Warner não há o mesmo pagamento residual a atores como Millie Bobby Brown, estrela do sucesso da série Netflix “Stranger Things”. Esse cenário também é o aplicado aos roteiristas, já que sob o argumento das associações WGA e SAG-AFTRA, a falta de transparência quanto à metrificação de audiência do VOD impede que esses profissionais recebam remuneração residual pelas reexibições de suas obras.
Outro ponto amplamente discutido foi a redução das cadeiras nas salas de roteiro. Isso porque o novo modelo de streaming trouxe consigo temporadas evidentemente mais curtas em obras seriadas. Enquanto as séries televisionadas possuíam entre 18 e 22 episódios por temporada, as plataformas passaram a encomendar um número cada vez menor, entre 8 e 13 episódios. Isso afetava não apenas a quantidade de roteiristas contratados por produção, como também o pagamento, que costumava ser feito por episódio escrito.
Além disso, os grevistas também debateram o uso de IA nas novas produções e buscam instigar o legislativo norte-americano a tratar da regulamentação dessa nova ferramenta, que afeta não só as salas de criação e etapa de desenvolvimento de roteiros, mas a etapa de produção em si. Isso porque a replicagem de imagem dos atores para uso nas obras já é realidade em algumas produções, e o interesse dos grandes conglomerados é que isso seja cada vez mais recorrente em virtude da otimização de investimentos financeiros, se comparado à contratação integral de um talento.
Como isso impacta a indústria do audiovisual?
Com a paralisação de duas das principais categorias profissionais do audiovisual – criação e interpretação - naturalmente, as produções também estacionaram – e o impacto é inquestionável. Dentre os efeitos colaterais desse movimento, tivemos o esvaziamento não só das salas de criação, como também nos sets de filmagem e, na etapa de pós-produção e divulgação das obras já finalizadas. Isso porque, os artistas não se propuseram ao cumprimento das condições de participação e presença nos eventos de divulgação dos projetos, o que fortaleceu ainda mais os pleitos em razão da importância da imagem dos talentos nas estratégias de comercialização e divulgação de cada série e filme.
O fato é que, como qualquer classe trabalhadora, a busca pela garantia de melhores e mais paritárias condições de trabalho também é direito desses agentes. E a clareza de que a construção de um ativo intelectual está intimamente ligada à potência criativa e estímulos à classe artística.
Ainda que o investimento financeiro e estratégico aplicado pelos estúdios e produtoras seja parte indiscutível e essencial dessa equação, todo cenário que envolve esse fazer coletivo que é o audiovisual é um convite ao reequilíbrio econômico. Que fique claro: o que as associações discutem e colocam em pauta não é o questionamento sobre a garantia ou prerrogativas comerciais ou de exploração de direitos, mas a simples concepção de que o todo é maior do que a soma das partes.
Qual foi o saldo?
O Sindicato dos Roteiristas chegou a um acordo com a Alliance of Motion Picture and Television Producers (AMPTP), associação comercial que representa os conglomerados de mídia que prevê garantias mínimas para a classe nos próximos três anos. Veja quais foram os resultados:
A reivindicação pelo pagamento dos residuals gerou frutos, dando lugar a um sistema de recompensas em conformidade com a abrangência e sucesso da obra aos criadores de cada projeto. Isso quer dizer que os roteiristas passam a ter remuneração adicional baseada na repercussão e audiência dos projetos, que agora devem conter uma métrica de horas assistidas a ser compartilhada com o sindicato – e aqui damos destaque à importância da transparência desses dados, o que até então permanecia em espaço silencioso para fins de remuneração aos criadores.
O Sindicato também trouxe conquistas ao estabelecer como obrigatoriedade um número mínimo de profissionais criativos a integrar as salas de criação/desenvolvimento. Como já mencionamos, uma das reivindicações e impasses apresentados pelo modelo de streaming estava na redução de temporadas das séries, o que acabava servindo de justificativa para que os estúdios e produtoras contratassem menos roteiristas. Nesse âmbito, os profissionais também receberam um reajuste em seus salários base, com percentuais que vão de 3,5% a 5% de aumento, a depender do tipo de produção.
Por fim, a questão de maior embate dentro da classe também chegou a uma conclusão: o uso de Inteligência Artificial como ferramenta nas salas de criação e roteiro. Nesse ponto, o acordo assinado entre o sindicato dos roteiristas e a AMPTP prevê que as AIs não poderão escrever ou reescrever qualquer material literário utilizado nas produções, trabalho este que deverá ser realizado apenas por criadores - sim, o roteirista no inspirar e transpirar..
Ainda, há a garantia de transparência aos membros do sindicato para o cenário em que qualquer material apresentado aos criadores e cuja origem venha de ferramentas de AIs, caberá aos criadores a decisão de fazer uso destas para composição de seus trabalhos, algo que também não deve ser imposto pelos estúdios.
A greve trouxe bons frutos para os agentes criativos do mercado cinematográfico, não deixando dúvidas sobre a força da reivindicação de direitos da classe artística, uma pausa forçada para pleitos e reflexão da indústria norte-americana. Um marco para demonstrar a força da cadeia artística e criativa no fazer coletivo, mas mais do que isso, a necessidade do constante equilíbrio de forças como estímulo ao fazer entretenimento.
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