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Sandbox da ANCINE, o laboratório que vai testar o futuro do streaming brasileiro

  • Foto do escritor: Matheus Gomes e Raquel Lemos
    Matheus Gomes e Raquel Lemos
  • há 2 horas
  • 8 min de leitura
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Nos últimos meses, a Agência Nacional do Cinema (ANCINE) vem intensificando seu papel de planejamento e regulação sobre o ecossistema audiovisual, especialmente diante das transformações trazidas pelo streaming e pela economia digital como novos vetores de inovação e mídia. Em paralelo ao debate legislativo em torno do PL do Streaming (PL 8.889/2017), que foi aprovado pela Câmara dos Deputados no último dia 04/11, a agência tem se mobilizado para construir um arcabouço regulatório mais dinâmico, participativo e baseado em evidências.


Três movimentos recentes sinalizam essa nova fase. A abertura de consultas públicas sobre a Agenda Regulatória 2025/2026, a proposta de adoção de um sandbox regulatório e a reformulação dos painéis de dados do Observatório do Cinema e do Audiovisual (OCA) em adequação a esse (não tão) novo modelo. Em conjunto, essas ações refletem uma tentativa clara de modernizar a regulação do setor e preparar terreno para o futuro marco legal do streaming no Brasil.


Colocada em consulta pública em junho deste ano, a Agenda Regulatória da ANCINE define as prioridades da agência para os próximos dois anos, com foco em transparência, tratamento de dados e revisão de instrumentos normativos mais adequados às novas composições do mercado audiovisual brasileiro independente.


O documento incorpora temas centrais para o momento, como a necessidade de padronização de metadados de obras audiovisuais, o aperfeiçoamento dos mecanismos de acompanhamento de mercado de VoD, especialmente diante regulamentação iminente trazida pelo PL, e a avaliação de impacto regulatório para futuras normas que incidirão sobre as novas relações entre os agentes.


No último dia 07 de novembro, a Agência abre mais uma consulta pública referente à Notícia Regulatória que trata da avaliação da ferramenta de sandbox regulatório no setor audiovisual brasileiro. Mais do que uma formalidade institucional, as consultas públicas representam uma abertura concreta para que produtoras, plataformas, associações e profissionais participem da formulação de políticas que impactarão diretamente seus contratos e modelos de negócio. Essa interlocução torna-se ainda mais relevante considerando que a chamada “Lei do Streaming”, quando aprovada, precisará ser regulamentada pela própria agência. O diálogo estabelecido agora será decisivo para calibrar futuras obrigações de investimento, transparência e diversidade de conteúdo.


O sandbox regulatório é uma ferramenta que permite ao regulador criar um ambiente controlado de testes, em que empresas, projetos, agentes e demais interessados experimentam soluções inovadoras sob supervisão pública e com flexibilização temporária de regras regulatórias.  Na prática, isso viabiliza testes em pequena escala, em um contexto de confiança entre regulados e a agência reguladora. A medida é autorizada pela Lei Complementar nº182, de 2020 e tem um objetivo duplo, ao memos tempo incentiva a inovação e, produz evidências concretas para a formulação de políticas públicas mais precisas e realistas. 


Quando falamos da atuação de uma agência reguladora, a adoção de soluções de caráter mais “empírico” incide diretamente no refinamento das futuras instruções normativas. As normas passam a nascer a partir da realidade enfrentada pelos agentes regulados, o que tende a produzir uma regulamentação factível, mais próxima dos anseios e das situações concretas vivenciadas nesse novo contexto.


O conceito foi desenvolvido no Reino Unido em 2015, com o Project Innovate, da Financial Conduct Authority (FCA). Naquele cenário, as fintechs puderam testar produtos e serviços financeiros em escala real, com feedback de clientes e sob monitoramento do ente regulador, que analisava essas interações, com o objetivo de aperfeiçoar o framework regulatório. O resultado foi um ambiente de aprendizado mútuo, em que as empresas ganharam segurança jurídica para inovar, e o Estado obteve informações valiosas para atualizar suas normas.


A experiência britânica inspirou uma série de outros países. Em Singapura, a Monetary Authority (MAS) criou um sandbox voltado para tecnologias emergentes em finanças digitais e RegTech, campo que envolve ouso de tecnologias, como inteligência artificial e análise de dados para auxiliar empresas a cumprir obrigações regulatórias de forma mais eficiente e automatizada. Esse modelo se tornou referência pela ênfase em governança de dados e avaliação de risco regulatório.


Em uma realidade mais próxima ao panorama latino-americano, temos o exemplo da Colômbia, por meio daResolução nº 5980/2020, adotou o instrumento no setor de telecomunicações e serviços digitais. A partir dele, novas soluções de conectividade e audiovisual puderam ser testadas sem a exigência imediata de licenças complexas, o que gerou um campo de experimentação controlada para inovação regulada.


O principal objetivo do sandbox colombiano é acelerar a inovação tecnológica no setor de Telecomunicações, e,  ao mesmo tempo, promover um ajuste progressivo do marco regulatório frente à transformação digital - movimento que dialoga diretamente com o atual momento do audiovisual brasileiro. Por meio dessa estrutura, a Comissão de Regulação de Comunicações (CRC) criou um canal alternativo para que empresas possam testar novos produtos, serviços e soluções em um ambiente de experimentação delimitado por prazo e área geográfica específicos, o que permite desenvolver novas soluções de conectividade e audiovisual sem a exigência imediata de  licenças complexas.


Outros exemplos vêm ganhando destaque no cenário global. A União Europeia instituiu o European Blockchain Sandbox, conectando agências nacionais para testar soluções de rastreabilidade e contratos inteligentes aplicáveis a cadeias culturais e criativas. Nos Emirados Árabes Unidos, o sandbox da DP World avalia tecnologias de automação, drones e Internet das Coisas (IoT) em operações logísticas, e demonstra como o conceito se adapta a diferentes setores. No campo cultural, o Canadian Heritage Innovation Lab utiliza mecanismos semelhantes para testar novos modelos de financiamento e licenciamento de conteúdos digitais.


Essa abordagem permite que o governo canadense observe, em escala reduzida, os impactos regulatórios e econômicos de determinadas soluções antes de incorporá-las de forma ampla ao marco normativo. Para o Brasil, experiências como essa desenham um horizonte possível e que  um ambiente de experimentação institucional reúne Estado, setor privado e agentes culturais em torno da busca por modelos mais justos e sustentáveis de circulação de obras digitais; especialmente no audiovisual, onde a inovação tecnológica e a segurança jurídica precisam caminhar lado a lado.


No contexto da ANCINE, o sandbox regulatório pode funcionar como um instrumento estratégico de integração entre o modelo de fomento tradicional, adotado  por meio da Lei do Audiovisual, dos Editais do FSA e demais mecanismos de incentivo, e a regulação de plataformas digitais. 


Antes de impor regras fixas, a agência poderá testar parâmetros de investimento em conteúdo nacional, mecanismos de transparência sobre dados de audiência, modelos de remuneração proporcional para produtores independentes e padrões de interoperabilidade de metadados. Esses testes consideram não apenas a mensuração de audiência, mas também o retorno objetivo previsto como receita por meio da CONDECINE, que passa a ser aplicável às plataformas de streaming a partir do sancionamento da Lei do Streaming. Esse tipo de ambiente experimental ganha relevância adicional porque o audiovisual envolve uma multiplicidade de agentes, como produtores, distribuidores, plataformas, artistas, associações de gestão coletiva e gestores públicos. Nesse cenário, qualquer alteração normativa impacta de forma direta contratos, cronogramas e fluxos financeiros para a realização de obras audiovisuais nacionais. 


Do ponto de vista jurídico, a adoção do sandbox pela ANCINE exigirá a definição de critérios de adesão, prazos de experimentação, mecanismos de prestação de contas e regras de governança a serem adotadas pelos entes envolvidos. Nesse sentido, a experiência de órgãos como o Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários pode servir de referência, já que ambas as instituições  determinaram normas próprias para sandboxes e criaram comissões multidisciplinares para avaliar projetos caso a caso, buscando uma realidade jurídica que se aproxime ao máximo da prática.


Paralelamente, a ANCINE tem ampliado e reformulado seus painéis públicos de dados no OCA, o Observatório do Cinema e do Audiovisual. As novas versões apresentam indicadores mais detalhados sobre TV paga, VoD, tipologia de obras e registros de títulos, fortalecendo a transparência do mercado e a capacidade de análise da própria agência. Essa maior granularidade tende a impactar as obrigações de prestação de informações por parte das empresas, exigindo mais padronização nos relatórios e maior governança sobre o fluxo de metadados. 


A atualização não é apenas estética. Representa um passo fundamental rumo à regulação baseada em evidências, em que decisões são tomadas a partir de dados concretos e não apenas em hipóteses políticas. Essa base de informações é essencial para o sucesso de um sandbox, já que permite avaliar o impacto real das medidas testadas. A transparência dos dados também aumenta a previsibilidade regulatória, contribui para reduzir conflitos entre agentes e pode fortalecer a confiança no papel da ANCINE como mediadora entre inovação e interesse público.


Ao adotar tais práticas e ampliar a participação pública nas consultas, a ANCINE se aproxima de uma tendência internacional de governança regulatória colaborativa. Nesse cenário, o ente regulador deixa de ser apenas um fiscal e passa a atuar como facilitador de inovação, aproximando-se das dinâmicas reais do mercado e criando instrumentos flexíveis de ajuste normativo. Entre suas principais atribuições está, para além de “fiscalizar”, o fomento à atividade, com a construção de um ecossistema voltado também no crescimento dessa seara da economia nacional.


Para o setor audiovisual brasileiro, esse movimento representa uma oportunidade de maturação institucional. É o momento de o mercado se preparar juridicamente para essas mudanças que vêm aí, revisar contratos e modelos de negócio, adaptar cláusulas de compliance  muitas vezes esquecidas e alheias a possíveis mudanças normativas, e estruturar políticas internas de transparência e crescimento diante dessa essa nova realidade regulatória.


Para quem está no dia a dia de salas de roteiro, negociações de coprodução, reuniões com plataformas ou editais públicos, o sandbox não fica no plano abstrato da regulação. Ele pode significar contratos que distribuem melhor os riscos, cláusulas que protegem resultados de audiência, métricas mais claras para comprovar impacto cultural e modelos de remuneração que reconhecem o valor do conteúdo independente. Em um cenário de tanta assimetria de informação, participar desse período de testes também é uma forma de disputar os critérios que vão orientar o dinheiro, os dados e a circulação das obras brasileiras nos próximos anos.


A Lemos Consultoria acompanha de perto essas transformações e oferece suporte especializado em regulação audiovisual, compliance de dados e estruturação de contratos adaptativos, orientados ao novo cenário de experimentação regulatória e inovação institucional que começa a se desenhar no país. Antecipar a esse novo cenário regulatório é, acima de tudo, uma forma de proteger a sustentabilidade e a competitividade das produções brasileiras no ecossistema audiovisual em transformação. O Cinema é vivo e está em constante mudança.


A Consulta Pública sobre o sandbox da ANCINE ficará aberta entre 7 de novembro e 21 de dezembro de 2025, com prazo total de 45 dias para o envio de contribuições. As manifestações devem ser feitas por meio da plataforma Brasil Participativo, acessível com login único Gov.br.


Fontes:


ANCINE abre Consulta Pública sobre uso do sandbox regulatório no setor audiovisual brasileiro. Disponível em: https://www.gov.br/ancine/pt-br/assuntos/noticias/ancine-abre-consulta-publica-sobre-uso-do-sandbox-regulatorio-no-setor-audiovisual-brasileiro?


Sandbox regulatório - estudos de casos no brasil e no mundo. Disponível em: https://share.google/OSIEyvVt3PpV1T9do


Funding – Culture, history and sport: página do PCH que lista diversos programas de financiamento para cultura, mídia digital, patrimônio etc., o que mostra que o órgão já opera mecanismos voltados à inovação cultural/digital. Disponível em: https://www.canada.ca/en/canadian-heritage/services/funding.html


Anatel: divulgação da “Tomada de Subsídios nº 10/2025” para a primeira edição do Sandbox Regulatório. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/anatel-publica-tomada-de-subsidios-para-primeira-edicao-do-sandbox-regulatorio-do-setor-de-telecomunicacoes


Lei complementar que instituiu o marco legal para sandboxes regulatórios: Lei Complementar n.º 182/2021 (Brasil), que embasa o uso de ambiente regulatório experimental para tecnologias inovadoras. Disponível em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/anac-consulta-publica-04-2024?utm_


ANCINE amplia transparência com reformulação do portal de dados e divulga crescimento do audiovisual brasileiro. Disponível em: https://www.gov.br/ancine/pt-br/assuntos/noticias/ancine-amplia-transparencia-com-reformulacao-do-portal-de-dados-e-divulga-crescimento-do-audiovisual-brasileiro


Ancine lança novos Painéis Interativos para dados do audiovisual. Disponível em: https://telaviva.com.br/27/05/2025/ancine-lanca-novos-paineis-interativos-para-dados-do-audiovisual/


ANCINE fortalece transparência e inovação com nova etapa do Painel de TV Paga. Disponível em: https://www.gov.br/ancine/pt-br/assuntos/noticias/ancine-fortalece-transparencia-e-inovacao-com-nova-etapa-do-painel-de-tv-paga


Ancine lança novos painéis interativos ampliam a transparência do audiovisual brasileiro. Disponível em: https://set.org.br/set-news/ancine-lanca-novos-paineis-interativos-ampliam-a-transparencia-do-audiovisual-brasileiro/


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Texto: Matheus Gomes Nunes

Revisão: Raquel Lemos

 
 
 
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